Cultura organizacional: diferenças entre países e dentro do Brasil

Por Prof. Dr. João Oliveira
Quando um comitê global define um “jeito de ser” único e o derrama para todas as unidades, dois riscos aparecem: (1) perda de aderência local — pessoas não se veem naquele conjunto de normas — e (2) fricção com clientes e fornecedores, que operam segundo costumes próprios. Estudos de cultura nacional mostram diferenças robustas entre países e também entre regiões de um mesmo país. No Brasil, por exemplo, pesquisas comparativas apontam perfis culturais distintos entre Norte, Nordeste e Sudeste — diferenças que escapam a modelos padronizados se não olharmos o que é local.
A literatura do projeto GLOBE reforça: a América Latina combina alto coletivismo no grupo (forte coesão em famílias e equipes) com baixo coletivismo institucional (regras formais menos internalizadas), algo que pede liderança próxima e redes de confiança — não apenas processos impessoais.
O que a ciência nos ensina sobre diferenças culturais na gestão
Ao longo das últimas décadas, diferentes pesquisas vêm mostrando que a forma como lideramos e organizamos o trabalho está diretamente ligada à cultura em que estamos inseridos.
Um dos modelos mais conhecidos é o de Geert Hofstede, que descreve seis dimensões culturais, como distância do poder, aversão à incerteza e individualismo versus coletivismo. Essas variáveis ajudam a entender por que certas práticas de gestão funcionam muito bem em alguns países e geram resistência em outros. Por exemplo, em culturas com maior distância de poder, espera-se mais deferência à hierarquia; em outras, a autonomia e a tomada de decisão compartilhada são mais valorizadas.
O GLOBE Project complementa esse olhar ao mostrar que, na América Latina, temos um padrão de orientação para desempenho mais moderada e um alto coletivismo no grupo. Na prática, isso significa que o reconhecimento social e as relações de confiança costumam engajar mais do que indicadores frios ou apenas métricas de produtividade.
A Harvard Business Review reforça esse ponto ao destacar que o estilo de liderança não é universal: o que em uma cultura pode ser visto como “participativo”, em outra pode soar “autoritário”. Cabe ao gestor calibrar, com sensibilidade, quem decide, quando e como.
Esse cuidado ganha ainda mais peso quando olhamos para os números da Gallup (2024–2025): apenas 21% dos trabalhadores no mundo estão engajados, e os gestores são justamente os mais pressionados nesse cenário. Ou seja, adaptar os sistemas de trabalho ao contexto local não é um detalhe, é uma condição para sustentar motivação e performance.
A McKinsey, em estudos recentes (2022–2024), mostra que transformações culturais bem-sucedidas não se apoiam apenas em comunicação inspiradora. Elas funcionam quando mexem em sistemas concretos — papéis, processos, incentivos. E reforça: não existe um único modelo válido para todas as unidades de negócio; dar autonomia para que cada filial ajuste suas práticas ao contexto aumenta a eficácia das mudanças.
No Brasil, um fator que se destaca é a segurança psicológica. Pesquisas nacionais, publicadas em bases como a SciELO, mostram que as equipes brasileiras respondem de maneira muito positiva quando percebem que podem se expressar sem medo de retaliação. Esse é um aspecto culturalmente sensível e, ao mesmo tempo, essencial para transformar hábitos de trabalho e abrir espaço para a inovação.
Não existe cultura melhor ou pior:
Eu gosto da metáfora do GPS organizacional: a estratégia é o destino; a cultura, o mapa da estrada. O “mapa global” dá a direção, mas o trajeto muda com o relevo local. Exigir que todas as filiais dirijam “em pista reta” é receita para atolar na primeira curva regional.
Dois princípios que uso com executivos:
- Coerência no propósito, flexibilidade no ritual. Defina não-negociáveis (ética, direitos humanos, integridade), mas permita variações em rituais, linguagem e mecanismos de decisão.
- Sistemas antes de slogans. Ajuste papéis, métricas, incentivos e canais de voz à realidade local. Campanhas internas sem mudanças de sistema raramente movem a agulha.
Dois exemplos corporativos que apoiam a ideia de adaptação:
A L’Oréal publica um Código de Ética aplicável a todo o grupo, disponibilizado em dezenas de idiomas, e organiza uma rede de Ethics Correspondents para trazer nuances de cada país, inclusive avaliação de riscos éticos locais pelos Country Managers. Isso mostra princípios globais com implementação sensível ao contexto — exatamente o equilíbrio que defendo.
Já a Unilever opera com um Code of Business Principles apoiado por 24 Code Policies — o que permite padronizar valores e detalhar práticas sem depender de um único manual. Esse arcabouço facilita ajustar processos a riscos e normas de cada mercado.
E dentro do Brasil? O mesmo país, culturas muito diferentes
O Brasil não é monolítico. Pesquisas comparando culturas regionais indicam diferenças marcantes (por exemplo, raízes afro-brasileiras no Nordeste e indígenas no Norte) que alteram expectativas sobre autoridade, formalidade e relacionamento. Conclusão dos autores: itens “globais” são grossos demais para capturar nuances estaduais, exigindo medidas locais.
Além disso, dados do IBGE mostram desigualdades culturais e de acesso a equipamentos culturais entre regiões, o que costuma dialogar com padrões de sociabilidade e trabalho — influenciando como pessoas aprendem, interagem e confiam. Para gestores, isso significa calibrar comunicação, ritos e presença de acordo com o território.
O que isso muda na gestão de filiais:
- Cidades grandes (alta impessoalidade): processos formais, SLAs e ferramentas digitais tendem a funcionar melhor; decisões podem ser mais rápidas e centralizadas.
- Cidades médias e pequenas (relações mais íntimas): credibilidade pessoal do gestor e rituais de presença (escuta, visitas a clientes/fornecedores) pesam mais que o procedimento escrito. Forçar apenas o padrão “grande centro” costuma quebrar pontes com stakeholders locais.
Fontes de gestão reforçam a necessidade de ajustar processos à cultura e de liderança situacional, sob pena de ruídos e queda de performance.
Como adaptar sem perder coerência: um roteiro em 7 passos para gestores
- Mapeie o “mínimo comum”: princípios éticos, direitos humanos, integridade, segurança — itens inegociáveis (ex.: códigos corporativos). Traduza em linguagem local e garanta canais de “speak up”.
- Faça um “inventário cultural” da unidade: distância de poder percebida, canais de confiança, ritmo de decisão, símbolos locais (use Hofstede/GLOBE como ponto de partida; depois refine com entrevistas e dados).
- Diagnostique sistemas, não só valores: quais papéis, metas e incentivos hoje reforçam (ou sabotam) os comportamentos desejados? Ajuste o sistema antes da campanha.
- Crie “variantes locais” de rituais: por exemplo, mesmo OKR global, mas cadência de check-ins e forma de feedback adaptadas ao nível de formalidade e confiança locais. (HBR recomenda “cultural translation” de processos.)
- Fortaleça a segurança psicológica: treine líderes para convidar a voz local — ferramentas validadas no Brasil indicam caminhos práticos de medição.
- Trate o gestor como “hub de contexto”: Gallup mostra que líderes são alavancas centrais do engajamento; invista em formação para leitura cultural e gestão em múltiplos cenários.
- Mensure com indicadores de adoção: engajamento, rotatividade, prazos de decisão, NPS de clientes/fornecedores locais. Compare filiais entre si, não só com a matriz.
Exemplos básicos:
- Política de atendimento ao cliente: Matriz exige scripts rígidos e impessoais (funcionou em metrópoles europeias). Em uma capital do Nordeste, onde relacionamento e tempo de conversa sustentam confiança, o NPS despenca. A correção? Mesmos princípios de compliance, mas permite-se flexibilidade de linguagem, tempo médio de atendimento e rituais de pós-venda — mantendo métricas de risco.
- Tomada de decisão: Em uma planta do interior, decisões só “pegam” quando o gestor de referência endossa pessoalmente. Substituir reuniões abertas por conversas estruturadas de bastidor + reforço público aumenta adesão sem violar princípios de governança.
- Uma filial no Japão (alta aversão à incerteza) vai precisar de regras claras e planejamento detalhado. Estruturas formais dão segurança às equipes e reduzem a ansiedade diante do risco. Nesse contexto, protocolos bem definidos e cronogramas rígidos são vistos como sinais de profissionalismo e respeito.
- Já uma unidade no Brasil (mais tolerante ao improviso) pode funcionar melhor com flexibilidade e redes de confiança. Aqui, a capacidade de adaptação rápida e o peso das relações pessoais muitas vezes importam mais que o manual escrito. A confiança construída no dia a dia abre portas que a burocracia, sozinha, não consegue abrir.
Possíveis Armadilhas mais comuns:
- Confundir ética com costume: princípios éticos são universais; costumes são locais. Códigos globais (como de L’Oréal e Unilever) existem para proteger a integridade justamente quando usos locais entram em choque com valores.
- Romantizar o “jeitinho”: adaptar não é flexibilizar controles; é ajustar o como sem trair o porquê.
- Mudar símbolos sem mexer em sistemas: lembre-se, cultura segue o incentivo. Sem ajuste de metas, alocação de poder e ritos de decisão, slogans viram ruído.
Há décadas oriento líderes a levarem sempre duas ferramentas na bagagem: a bússola, que representa os princípios, e o mapa, que simboliza o contexto. A bússola protege contra desvios éticos; o mapa ajuda a não se perder ao tentar impor linhas retas em terrenos cheios de curvas. Tanto no Brasil quanto no cenário global, as culturas organizacionais não são melhores nem piores — apenas diferentes. Quem cresce de forma sustentável é aquele que respeita o território sem jamais perder o norte.
Referências:
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Indicadores culturais e estudos regionais. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 3 set. 2025.
FRC – FINANCIAL REPORTING COUNCIL. Relatório anual L’Oréal. Disponível em: https://loreal-finance.publispeak.com. Acesso em: 4 set. 2025.
GALLUP. State of the Global Workplace 2024. Disponível em: https://www.gallup.com. Acesso em: 3 set. 2025.
GLOBE PROJECT. Culture and leadership across nations: Latin America and Brazil profiles. Disponível em: https://globeproject.com. Acesso em: 6 set. 2025.
HARVARD BUSINESS REVIEW. Leading across cultures; adapting management processes. Disponível em: https://hbr.org. Acesso em: 5 set. 2025.
HOFSTEDE, Geert. Culture’s consequences: comparing values, behaviors, institutions and organizations across nations. 2. ed. Thousand Oaks: SAGE, 2001.
L’ORÉAL. Código de Ética corporativo. Disponível em: https://www.loreal.com. Acesso em: 7 set. 2025.
MCKINSEY & COMPANY. Organizational culture and transformation. Disponível em: https://www.mckinsey.com. Acesso em: 5 set. 2025.
MOTTA, Fernando C. Prestes; CALDAS, Miguel P. Cultura organizacional e cultura brasileira. São Paulo: Atlas, 1997.
RESEARCHGATE. Estudos sobre culturas regionais no Brasil. Disponível em: https://www.researchgate.net. Acesso em: 3 set. 2025.
SCIELO. Escalas de segurança psicológica em equipes brasileiras: evidências de validade. Disponível em: https://www.scielo.org. Acesso em: 7 set. 2025.
UNILEVER. Code of Business Principles and 24 Code Policies. Disponível em: https://www.unilever.com. Acesso em: 6 set. 2025.
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